Compromisso Social da Psicologia

terça-feira, 21 de agosto de 2012 | 12:37 | Por 1 comentário

Novo projeto para a profissão no Brasil: Contribuições para a Formação

Os Conselhos de Psicologia mantém com as questões da formação uma relação importante. O projeto para a profissão que vai sendo construído pelo coletivo da categoria precisa encontrar respaldo e espaço para se desenvolver nos cursos de formação.

Esse projeto ao qual me refiro possui vários aspectos e me cabe, aqui, apresentá-lo a partir de sua meta: o compromisso social da Psicologia com as questões sociais brasileiras.

Quais as questões sociais mais urgentes e importantes; como a profissão deve se relacionar com elas para então chegarmos a uma formação que permita colocar no mercado, profissionais que trabalharão para a solução dos problemas.

Vivemos em um país de Terceiro Mundo, situado em um continente de Terceiro Mundo. O capitalismo é nosso modo de produzir sobrevivências e de produzirmos nossas relações sociais. O neoliberalismo é nossa nova marca no mundo globalizado. As características são perversas: desigualdade social como decorrência estrutural do modo de produção. O capitalismo gera, por sua natureza, a desigualdade. Soma-se então a globalização, como imposição de um padrão de consumo universalizado; a redução da presença do Estado na sociedade, gerando uma redução do espaço público e da possibilidade real dos sujeitos serem considerados iguais e fraternos. O discurso da liberdade encobre o retrocesso. As condições de trabalho se precarizam e muitas pessoas passam a estar excluídas da esfera produtiva. Ausência de qualificação, desemprego, incerteza do futuro...pauperismo. As políticas sociais foram reduzidas ao longo dos últimos 30 anos. O Estado recua no seu papel de assistir à população pobre e entrega esta tarefa às chamadas Organizações Não Governamentais – as ONGs, que cheias de boas intenções auxiliam na construção do inferno social. As políticas sociais desenvolvidas desta forma ajudam a integrar os necessitados, mas também e muitas vezes, contribuem na estigmatização, na produção de subjetividades humilhadas e submissas.

O Estado tem perdido sua capacidade regulatória e se torna presa fácil da violência privada. A proteção de direitos sociais se torna custo. As classes dominantes se constituem a partir de uma subjetividade antipública e desistem do projeto de integrar as camadas pobres, que ficam excluídas da produção e da cidadania.

Nossas relações sociais de convivência são atingidas: sentimentos de hostilidade, desconfiança, irritação e medo caracterizam nossas relações e as camadas dominantes ao se aperceberem destes sentimentos criam aparatos repressivos e de segurança. O espaço público se esvazia e a segregação nos atinge. Alguns espaços urbanos passam a ser ocupados exclusivamente por determinados grupos sociais. Há uma verdadeira ruptura dos vínculos sociais que não nos permite nos percebermos em um mesmo país. Religiões e culturas distintas vão se construindo.

Cidadãos? Apenas alguns. A maioria é excluída desta condição. Isso significa que alguns não farão parte da construção e das decisões políticas do país. Não construirão as condições de vida a que estarão submetidas; não construirão soluções para as suas necessidades; serão usuários dos serviços, das decisões, dos restos...

Muitas pessoas nesta sociedade estão abaixo da linha da pobreza; muitos são muito pobres e quase todos são pobres. As estatísticas da desigualdade são assustadoras: segundo o Atlas da Exclusão organizado por Marcio Pochmann e Ricardo Amorim, a renda dos 10% mais ricos corresponde a 45% do PIB nacional. A situação piora se incluímos nesse cálculo dados sobre o patrimônio, quando o percentual chega a 75,4% da riqueza total brasileira na mão de 10% da população. O pior talvez seja imaginarmos pelo inverso: 24,6% da riqueza brasileira estão distribuídas entre 90% da população. O Brasil entre 80 e 90 registrou um aumento do número de ricos, mas registrou nesse período uma redução do crescimento do país. O pobre gasta 32,79% da sua renda com comida e o rico apenas 10,26%, o que mostra, segundo estudo de Marcelo Medeiros, que os pobres pagam mais tributo, proporcionalmente, do que os ricos que vivem com conforto.

Os direitos obviamente não estão adequadamente e nem igualmente distribuídos. Os espaços estão desigualmente divididos; o poder político está concentrado na mão de grupos dominantes da elite. Muitas crianças não comem mais do que uma vez por dia; muitas sentem frio, não conseguem acompanhar e/ou freqüentar as escolas; muitas não brincam, pois trabalham e muitas nem mesmo são crianças: são menores. Os adultos também são estratificados em doutores, senhoras e senhores e os Zes. O direito à vida é desigualmente dividido, a ponto de termos vidas que valem muito e outras que nada valem. A assistência social atinge apenas alguns; outros não têm acesso ao mais mínimo direito.

Bem essa realidade é conhecida de todos. Vemos todo dia isto na rua; vemos na TV... Enfim, é uma realidade familiar a todos nós. Mas o que tem a Psicologia com isso?

E aí falaremos de compromisso social. A Psicologia desde sua introdução como conhecimento no Brasil e depois como profissão manteve algum tipo de compromisso com a sociedade brasileira. Qual foi ele? Se tomarmos a história da Psicologia no Brasil, vamos encontrar uma história de compromisso com as elites e seus interesses. A Psicologia foi utilizada como conhecimento e como prática para responder aos interesses de controle, de categorização, de selecionar.

Se tomarmos os momentos iniciais da perspectiva psicológica no Brasil, quando não éramos e não falamos ainda de Psicologia, mas apenas de preocupações existentes em relação às condutas e aos sentimentos das pessoas, vamos encontrar a psicologia respondendo aos interesses das elites.

Outros aspectos importantes devem ser introduzidos em nossa análise. A Psicologia recebeu uma certidão de nascimento (a Lei 4119) antes mesmo que a criança tivesse nascido. A relação íntima mantida por uma pequena quantidade de pessoas envolvidas com a Psicologia (não chegávamos a mil) com a elite brasileira e a credibilidade de que a Psicologia pudesse colaborar no projeto de modernização da sociedade brasileira vão levar a aprovação de uma lei que nem havia sido reivindicada, até porque não havia corporação interessada e mobilizada para essa reivindicação. O projeto de lei dos psicólogos foi apresentado pelo próprio Estado. A Psicologia prometia com sua tecnologia –os testes psicológicos- contribuir para a previsão e o controle dos comportamentos. Permitia colocar o homem certo no lugar certo; prometia facilitar a aprendizagem; adaptar as pessoas; facilitar a percepção de cada um sobre si mesmo. Eram muitos os interesses que a Psicologia podia ajudar a resolver e não fazia isso de modo espontâneo; possuía tecnologia apropriada para esta tarefa. Esse conjunto de fatores colocou a Psicologia em um lugar privilegiado na sociedade do início da segunda metade do século XX. Éramos da elite e podíamos ajudar a responder demandas desta elite de modo competente e científico, baseado em tecnologia. Podíamos ainda fortalecer as idéias modernas de eu, de individualidade, de vida privada. Nada mais moderno! A elite precisava da Psicologia, por isso a regulamentou. Mas as condições para sermos efetivamente uma profissão não estavam dadas: não tínhamos a corporação para dar forma à profissão; não tínhamos o discurso ideológico que caracteriza uma profissão; não tínhamos modelos nem lastro.

Estavam colocadas condições para o surgimento e desenvolvimento da Psicologia; mas estavam também colocadas tarefas importantes. Era preciso construir a profissão que havia sido regulamentada; era preciso construir um projeto para esta profissão e uma corporação, identificada em torno do projeto para sustentar a profissão e seu lugar social. A categoria tinha a tarefa de se por como profissionais em uma sociedade que não conhecia esta profissão; não a reivindicou.

Passamos os anos 70, 80 e 90 nos perguntando quem somos, que psicólogos queremos ser. Isto expressa claramente a falta de um projeto para a profissão e a necessidade de construí-lo. Talvez termos nascido sob a ditadura militar, a falta de democracia social, as lutas ocultas nos partidos, nas várias formas de arte, nas academias... Talvez tenham formado um bom terreno para escaparmos de um projeto corporativista, mesquinho, que nos mantivesse aliados às elites.

Sem duvida, a abertura de novos cursos e todo país, colocou na Universidade as camadas médias e possibilitou uma composição de categoria profissional para além dos filhos das elites. A situação era propicia para o desenvolvimento de um projeto de compromisso social.

E a Psicologia, que até então se colocava de costas para a realidade social, acreditando possível explicar o humano sem considerar sua realidade econômica, cultural e social, se voltou para a sociedade. O surgimento da Psicologia Comunitária e a inserção e desenvolvimento da prática dos psicólogos na saúde pública podem ser considerados aspectos importantes do projeto de compromisso que iria surgir.

A Psicologia começa, neste século XXI, a se voltar para as políticas públicas, para um compromisso com a maioria da população e suas urgências, para a ética e seus desafios na sociedade moderna e para os Direitos Humanos. Queremos fortalecer e ampliar nossa inserção social, mas a partir deste projeto: o do compromisso social.

Compromisso com a sociedade a Psicologia sempre manteve, mas seu compromisso tem sido com as elites e seus interesses. Nosso projeto significa um rompimento com esta tradição e a construção de um novo lugar para a Psicologia; a construção de uma nova relação da Psicologia com a sociedade. Queremos uma Psicologia a serviço dos interesses da maioria da sociedade; um psicologia acessível a todos. Este novo compromisso que queremos manter com a sociedade exige uma nova formação.

A formação que temos, tradicionalmente mantido em nossas escolas não prepara para este projeto, para este lugar social. Apesar de reconhecer o esforço das Universidades de caminharem nesta direção, principalmente da parte dos estudantes, ainda diria que não temos uma formação voltada para este projeto. Não temos ainda disciplinas que discutam e informem sobre as políticas públicas; não criamos ainda o espaço do debate dos direitos humanos; na injetamos ainda a realidade da desigualdade social em nossas escolas.

A Psicologia que ensinamos ainda é aquela que se fundamenta em perspectivas universalizantes e naturalizantes da subjetividade. Idéias que pensavam o homem como um ser natural, dotado de capacidades e características da espécie e que, inserido em um meio adequado, poderia ter seu desenvolvimento. O desenvolvimento das capacidades do homem depende das condições externas e do esforço realizado por cada um, no sentido do aproveitamento das condições.

A Prática profissional surge então carregada de uma perspectiva corretiva e terapêutica. Não poderia ser outra, pois se já somos o que vamos ser, dada a natureza humana da qual somos dotados, a Psicologia só poderia se constituir enquanto prática profissional como um conhecimento e um conjunto técnico que detecta desvios do desenvolvimento humano (em relação ao que é concebido como natural), propondo-se como algo que reencaminha, realinha, adapta, cura.

Necessitamos rever nossos conhecimentos e práticas a partir de noções que entendam o homem como um ser constituído ao longo de sua própria vida, ao longo de sua ação sobre o mundo, na interação com os outros homens, inseridos em uma cultura que acumula e contém o desenvolvimento de gerações anteriores. Estas perspectivas fortalecem nosso vinculo com a sociedade onde inserimos nosso trabalho.

Nossa formação tem sido muito técnica e pouco ética, no sentido de que enfatiza o que fazer e não reflete sobre a adesão a projetos sociais, não estimula o debate sobre a realidade social e suas demandas. Ensina como aplicar e não ensina por que aplicar. Ensina a responder e não ensina a perguntar.

Quero aqui fazer a defesa de uma formação inquietante e que ensine a perguntar. A Universidade não pode se limitar a ensinar a responder. É preciso ir além e ensinar a perguntar. Perguntar sempre coisas à realidade; perguntar sempre à teoria. Não podemos, como pessoas de formação denominada superior, nos satisfazermos com o óbvio. A ciência é um processo de pensamento que vai para além da aparência, do empírico, do visível.

Por tudo isso, defendemos uma formação em Psicologia que seja marcada pela ciência e pela pesquisa. Defendemos uma concepção de profissão que não se limita ao saber aplicar bem conhecimentos prontos (isso é uma formação técnica). Defendemos uma profissão como um exercício permanente de busca de explicações sobre a realidade. Precisamos entender que profissão não é apropriação de um saber; profissão é apropriação de um saber e de uma postura crítica que não permite a satisfação plena com o que se sabe.

Uma formação assim deve ter cadeiras e espaços de pesquisa. Uma formação assim deve ter espaços de reflexão sobre os projetos que nossa sociedade precisa. Isso significa que nunca mais devemos nos importar tanto com a linha teórica do colega, mas sim com a transformação que ele escolheu promover.

Uma formação assim é plural e generalista. Apresenta aos alunos o maior número de linhas teóricas e abordagens da Psicologia; ensina as mais variadas técnicas; ensina a aplicação em vários campos; privilegia ética como a busca dos valores que são bons para todos; toma os estágios como espaços de contato problematizador com a realidade e com o saber. É uma formação dotada de uma perspectiva histórica que nos coloque frente ao conhecimento de modo a entendê-lo como algo construído no decorrer do tempo, pelos homens, para respondermos a questões da sociedade; portanto um conhecimento intencionado, posicionado. O conhecimento não é ingênuo e nem neutro e isso exige que saibamos nos posicionar.

A Universidade deve ser o lugar do aprendizado no sentido da construção de um projeto para se estar no mundo como profissionais psicólogos. Devemos ser capazes de justificar nosso fazer, não por razões das abordagens teóricas que adotamos, mas por razões políticas, ou seja, de finalidade sociais que colocamos para nosso fazer profissional na busca do bem estar coletivo, na busca de um mundo melhor, que sabemos que é possível.

Termino então expressando minha credibilidade em um percurso na formação que carregue o aluno de um desejo por estudar psicologia para conhecer-se melhor ou para entender os mistérios do humano (como têm demonstrado as pesquisas sobre os motivos que levam os jovens à Psicologia) para um lugar de compromisso com a realidade brasileira. É preciso colocar a Psicologia a serviço da sociedade; é preciso colocar a Psicologia a serviços da construção de um mundo melhor, de condições de vida digna, de respeito aos direitos humanos e da construção de políticas públicas que possam oferecer Psicologia a quem dela tiver necessidade.

A dimensão subjetiva da realidade está aí, em todos os espaços e em todos os coletivos. É preciso trazer a Psicologia para fazer a leitura desta dimensão e contribuir com isto para a transformação da dura realidade desigual de nosso país.

Termino relembrando e parafraseando Brecht para dizer do projeto pelo qual lutamos e pela formação que almejamos: aquelas nas quais os profissionais, no exercício da profissão, ao se depararem com a violência das águas do rio, devem considerar, não a natureza violenta das águas, mas a estreiteza das margens que a comprimem. Esse deve ser o norte de nosso compromisso com a sociedade e o eixo de nossa formação. Uma psicologia que nos permita sempre considerar a estreiteza das margens que comprimem o rio!


*Texto de Ana Mercês Bahia Bock
ABEP setembro 2005

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